No fatídico nove de abril deste ano a cidade de Ribeirão Preto, interior do Estado de São Paulo, foi “chacoalhada” por dois sequenciais homicídios de mulheres transexuais. Pela manhã, o corpo de Márcia Marcita foi encontrado sem vida em sua casa (Parque Avelino Palma); à noite, foi assassinada Milena Massafera em Vila Tibério. Ainda não se sabe se a autoria dos crimes tem alguma relação entre si, mas ambos contêm os costumeiros requintes de crueldade e a carga de ódio que acompanham os casos relacionados às transexuais.
Quero me deter no caso Milena Massafera. O que se sabe até agora, a partir de veiculação midiática, é que Milena combinou um programa com um cliente na noite de nove de abril. As câmeras mostram um rapaz desembarcando de um carro preto quase em frente ao prédio onde ela morava. Milena chegou em um automóvel de cor branca cinco minutos depois; ambos entram no prédio.
No apartamento o rapaz desferiu 28 facadas em várias partes do corpo de Milena e tentou cortar o seu tornozelo, tomou banho, se trocou, pegou o celular dela, as chaves e 34 minutos depois de ter entrado no prédio atravessava a rua portando a mesma bolsa a tiracolo que carregava desde que chegou. Lá dentro, tudo revirado, marcas de sangue para todo lado.
As investigações – quem era ele? motivações e possível relação com o outro homicídio - estão em andamento, porém, quero tocar em outros pontos que não exatamente o crime em si, mas que vieram como uma teia que ele teceu.
No programa de TV Thathi Cidade do dia dezesseis de abril o âncora e repórter Orlando Pesoti anunciou um furo de reportagem: ele e sua equipe, com exclusividade, tiveram acesso ao apartamento de Milena, junto aos pais dela, que foram as primeiras pessoas que viram o corpo, além do chaveiro que abriu a porta. A reportagem, de fato, fez todo o percurso daquela noite (da calçada até o interior do aposento). O anúncio foi alardeado e o feito lembrado em quatro ocasiões durante o programa, de forma bombástica, e devidamente enquadrado no retrato da concorrência midiática; afirma Orlando Pesoti: “...nenhuma equipe de reportagem teve acesso ou mostrou, do que acontece dali para dentro, ninguém tinha mostrado ainda....” (...) “...eu não vi nenhuma equipe de televisão percorrer o caminho que o assassino fez, isso eu não vi” (...) “...nós somos a única equipe de televisão, junto com os pais, nós vamos ter acesso ao apartamento de Milena” (...) “nós vamos agora...a única equipe de televisão a ter acesso à quitinete, ao apartamento de Milena Massafera”[1].
E o repórter reforça: “...é um ser humano, é um ser humano que merece nosso respeito, nossa admiração e nosso carinho....”.
Em seguida vê-se as imagens de Orlando Pesoti indo em direção a um casal de idosos, nordestinos vindos do Maranhão. Trata-se do Seu José, pai de Milena, um senhor moreno, baixo, os poucos cabelos restantes já totalmente brancos. Dona Maria, uma senhora baixa, de pele mais morena, cabelos brancos na parte frontal, mãe de Milena. Ambos com os semblantes bastante entristecidos, para além da dureza da vida dos migrantes no Sudeste do país. E certa perplexidade no olhar.
O repórter, então, diz, ainda na calçada, em frente ao prédio: “Está aqui o Seu José e a Dona Maria que são os pais de Milena Massafera. José, como que era a Milena?”
Ele responde: “Um rapaz muito bom. Teve uma criação de respeitar as pessoas desde seus dezoito anos. Um ra... um menino, um garoto de muito comportamento nas escolas, nunca recebi uma queixa desse menino, pelo diretor, pelo professor, por um colega de estudo, de escola, nunca me deu trabalho. Por quê? Eu, como pai, essa, como mãe, nós sempre tentamos aconselhar, ensinar os caminhos, os passos da vida, por onde deve caminhar”.
Em nenhum momento Seu José utiliza o gênero feminino para falar de Milena, sempre utiliza o masculino (garoto, rapaz, menino...), embora Orlando Pesoti, do início ao fim, tenha sempre se referido a Milena no feminino. Pode-se supor que Seu José estava resgatando um registro memorialístico de um período em que, provavelmente, Milena ainda não tinha realizado sua transição de gênero. Mas, quanto ao discurso de Dona Maria, afirma ela:
“(...) eu quero que peguem esses assassinos que fizeram isso com a Milena porque ele era muito bom para mim, todo dia a gente se falava, ele ia todo fim de semana, ele tinha todo cuidado comigo, agora eu me sinto desprotegida, sem ele, né? (....) era para ele ir almoçar lá em casa (...) quando eu vi de longe ele deitado com aquele sangue...”.
Veja que Dona Maria mesmo iniciando com o nome Milena, não sustenta o gênero feminino na sua fala, referindo-se sempre a “ele”.
E o pai, diz, ao se referir a uma das idas ao apartamento depois do crime: “....voltamos para pegar as coisas dele”.
Em seguida, Orlando Pesoti, Dona Maria e Seu José entram no prédio e iniciam o percurso feito por Milena e o assassino até chegarem ao apartamento “onde tudo aconteceu” (conforme o repórter), detendo-se em cada detalhe do imóvel.
Mas chama atenção que agora Dona Maria usa o feminino para se referir a Milena: “...ele entrou, foi junto com ela” (referindo-se ao fato do assassino ter entrado no apartamento junto com a Milena).
E vai apresentando alternâncias. Dona Maria afirma:
“...abriu, e aí estava ele estirado assim, de bruços, o chaveiro não quis nem..., ele saiu, quase passa mal, aí que abriu, que eu vi de longe, aí pronto, aí deitado de bruços (...) Por aqui estava tudo cheio de sangue, ele estava com os pés para cá e a cabeça para lá, de bruços, furado até nos pés, estava de saltos (....) estava de roupa íntima, acho que ele tirou só a roupa de cima, quando ele entrou lá nós vimos que ele estava no vestidinho, e a bolsa que ele entrou, que a gente vê, que eu levei para casa, até ela tem um botão assim, tinha cabelo dela, acho que ela estava com a bolsa, ele deve ter puxado e enganchou no cabelo dela, porque o homem lá, o delegado, falou que furaram aqui, que devem ter pego ela de costas....”.
Interessante que Dona Maria, usa um bloco homogêneo no masculino, mas a partir de “tinha cabelo dela”, engata outro bloco, que é uma sequência de menções a Milena no feminino, como se embalasse, sem perceber, que está agora usando o artigo correto na perspectiva do respeito à identidade de gênero (e como, creio, Milena gostaria de ser chamada). Parece um “lapso”, pois em seguida não sustenta e volta ao gênero masculino.
Diz ela: “...na hora que abriu eu vi de longe ele deitado ali (ela relembra quando a porta do apartamento foi aberta) (.....) uma pessoa...todo mundo gostava desse menino, o bairro que eu morei foi todo mundo com ele lá, para o funeral dele (...) como é que eu vou passar o Dia das Mães sem ele?”
Em seguida, vem outra composição alternada. Ela afirma: “olha meus filhos, os outros irmãos dela; não dormem, estão trabalhando na marra, não comem direito, aquela menina que é neta, que é sobrinha dele, que era meio que uma filha para ele, não dorme só, no quarto, não consegue dormir, acabou com nós, acabou com minha vida”.
Milena era uma mulher transexual belíssima e atraente, com traços completamente femininos, porém, seu pai, ao menos em termos gramaticais não consegue a ela assim se referir, como vimos. Já sua mãe, tudo indica, a via claramente como uma mulher, mas na hora do gênero, gramaticalmente alternava, como se tivesse dificuldade de aceitar a transição integralmente.
Obviamente que para tecer considerações mais consistentes precisaríamos de outra e diferente conversa com os pais de Milena. Fica evidente que não existe por parte deles qualquer intenção discriminatória, desmerecimento, desrespeito ou algo do tipo, o que é demonstrando pelo amor e carinho existentes na relação entre Milena e seus pais e como ela se dava bem com toda a sua família. Há muitos pais que tratam seus filhos transexuais adequadamente em termos de gênero, mas já vi, ouvi e assisti casos em que pai e mãe, por mais amor e respeito que tenham, não conseguem tratar seus filhos transexuais nessa perspectiva.
Isso tudo revela uma questão discursiva ou gramatical apenas? Algo geracional (imaginando que pais idosos tenham mais dificuldade para lidar com a situação)? Uma resistência inconsciente?
Seja lá o que for, acredito que expõe uma questão de cunho cultural em que estamos imersos, pois se trata de uma sociedade forjada na perspectiva machista e cisgênera como imposições e modelos a serem seguidos pelas famílias na criação de seus filhos; elementos esses que acabam “driblando” relações e afetos. Aquilo que sai desse script gera fraturas que resvalam também na questão linguística. Assim, os tentáculos da resistente transfobia, que ceifa tantas vidas (como a de Milena, Márcia Marcita e tantas outras), acabam chegando até à questão gramatical, embora saibamos que o mais importante (exemplo dos pais de Milena) é as pessoas serem felizes como elas são.
[1] https://www.facebook.com/watch/live/?v=269282831509863&ref=watch_permalink. Todas citações do programa em pauta, neste artigo, vêm dessa mesma fonte e estão sempre entre aspas.