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A loucura da razão

A loucura da razão
Cláudio Costa Val
nov. 30 - 10 min de leitura
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Desnecessário dizer que a quarentena mudou o cotidiano de muita gente, não é mesmo? Quem não teve a rotina transformada que levante a mão. Alguém?... Uhñ?... Ninguém?... Pois é, comigo não foi diferente. Como professor e produtor de cinema, diretor de cena e músico, fui impelido, desde o dia vinte e três de março do ano dois mil, quatrocentos e quarenta e nove da morte de Péricles, ou do ano quatrocentos e sessenta e quatro da deglutição do bispo Sardinha pelos índios caetés, no litoral do Pernambuco, ou ainda do ano de dois mil e vinte da era cristã, a me embrenhar em clausura completa, despertando-me até curiosidade por vivência monástica. Em que roteiro de ficção científica distópica a bolota azul intitulada Terra foi enredada, hein? Tempos bizarros... Não fossem as minhas aulas online de roteiro para cinema e direção cinematográfica; não fossem a literatura, as edições de curtas-metragens, os editais, as lives, a produção/divulgação de disco novo e os videozinhos remotos cheios de janelinhas, bombardeando as redes sociais, a racionalidade teria implodido faz tempo. Pensando agora, e pensando bem, puxa vida: até que fiz muita coisa! Mais que se estivesse envolvido em atividades externas “normais”. Ainda que solitário feito um urso-pardo no inverno, andei produzindo à beça. Porém, o sabor não foi o mesmo.

“Nenhum homem é uma ilha”, já diziam. Verdade absoluta! Impossível discordar. Mesmo atracado em ilha (de edição) há nove meses, comprovei, em corpo, mente e espírito, que convivência é, de fato, condição sine qua non para o processo evolutivo dos sapiens. Nem em um pedaço de terra paradisíaco, cercado por água de todos os lados, livre de qualquer perigo, a solidão valeria a pena.

Mas, esperem um pouco... Jean-Paul Sartre não dizia que “o inferno são os outros”? Logo, a clausura pode ser importante, em algum momento da existência. Será mesmo? Analisando as entrelinhas, tentemos entender minha conjeturação. Escrevi: “em algum momento da existência”. Portanto, desde que seja retiro voluntário. Nunca de maneira obrigatória, invariável e irremediavelmente. Até mesmo porque, o conceito sartreano de liberdade pressupõe consciência nas escolhas e ações.

Certa vez, o cineasta mexicano Alfonso Cuarón disse:

– A existência nada mais é que uma experiência coletiva da solidão.

A frase é impactante, e carrega tom melancólico. Sob este prisma, possibilidades de reflexão se revelam. A primeira delas é que, mesmo predestinados à convivência social, nossa individualidade e necessidades mais íntimas não podem ser negligenciadas. Precisamos de momentos a sós, para que nos enxerguemos e, assim, entendamos a nós mesmos e, posteriormente, aos outros. Além disso, é fundamental saber que, por mais que estejamos rodeados por entes queridos, parentes e amigos, ainda assim, seremos sempre um só corpo no espaço-tempo. Eis aqui um possível desdobramento filosófico à minha afirmação. Somos “indivíduos” – a acepção do termo define nossa instância primeira. Por que, então, a clausura pandêmica, a tanta gente, abalou?

Simples: porque somos ansiosos por natureza, e precisamos de perspectivas positivas. Quando não as enxergamos – ou quando não sentimos as possibilidades –, tornamo-nos incompletos. Desconheço quem gostava de permanecer trancado em casa, por obrigação. Agora, ainda menos. Quando ficávamos, era opção. Embora entendamos o conceito, o recolhimento forçado amargou a língua. Revolveu as entranhas; abalou os sentimentos. Todavia, precisávamos (e ainda precisamos) fazer a nossa parte. Se cada um tiver consciência, a coletividade vencerá. O importante é resistir, seguir em frente. Porque dói. Lamentavelmente, dói saber que milhares pereceram. Dá aperto no peito – aquela sensação de impotência gigantesca.

Hoje mandei mensagem para a minha única sobrinha. Havia anos que não nos falávamos. Aos quinze anos, a menina está linda! Por questões familiares complexas, desavenças por motivo de espólio – quem nunca? –, afastei-me do meu irmão. Embora seja um paradoxo, se levarmos em conta a realidade mundial, talvez seja momento de reaproximação, no sentido mais amplo do termo, e não apenas no aspecto “físico”. Pedi aos meus filhos que também entrassem em contato com a prima. “Família, né?”, disse-me o primogênito. Obviamente, não é difícil perceber que a menina sente falta dos parentes. “Ninguém é uma ilha”, ora, pois!

A vida em retiro me fez, também, ficar atento às possibilidades profissionais. Daí, descobri diversos editais de incentivo à produção cultural e artística. Aos profissionais que atuam no meio, têm sido um estímulo. Participar de festivais virou atividade fundamental.

Para um deles, precisava preencher o formulário e imprimi-lo, enviando-o posteriormente pelo correio. E não é que, no meio da tarefa, o cartucho da minha impressora acabou? Procurei na gaveta o reserva – não o tinha!

Chateado, liguei para a loja de suprimentos, que me atende desde dois mil e três. É sério, são dezessete anos comprando no mesmo lugar. Até foto minha, na parede, a loja tem.

Ao telefone, a mocinha me atendeu: "ah, sinto muito, senhor. Infelizmente, hoje não dá mais para o motoboy ir aí. Já temos mais de trinta pedidos". A resposta me abalou, sismicamente. Eram onze horas da manhã. Onze da manhã! E não havia como me atender? Claro que foi inevitável concluir: na quarentena, há pessoas ganhando mais dinheiro do que em épocas “normais”.

Não teve jeito: enfiei-me no chuveiro (em clausura, banhos se tornaram eventos notáveis) e preparei-me para sair. A última visita à vida, ao sol, ao ar puro (puro?), ao tudo, ao nada, ao Cosmos, acontecera havia noventa e seis horas. Assustado com o vírus, pensei: "prevenir-me-ei".

Minha farta coleção de máscaras protetoras estava ao alcance. Mas precisava salvaguardar as mãos. Com dedo cortado por acidente doméstico – vai cozinhar, vai? –, a pulga instalou-se atrás da orelha. “Melhor ser consciente e me precaver, né?”. Luvas de látex, em casa, não havia. Procurei qualquer coisa que tivesse função manual protetora e encontrei um par, que minha ex-noiva, aquela danada, comprara em Paris e me presenteara. Mas eram luvas felpudas – foram adquiridas no inverno europeu. Com tantos pelos, desisti de usá-las – tive a certeza que o Corona pegaria, ali, carona. Deixei-as para lá. Enrolei um baita emplastro curativo no dedo lesionado e pronto! Saí.

Na loja de suprimentos, defronte à porta de ferro, bati. A mocinha, mascarada, trabalhava sozinha. Levou mais de dez minutos para me atender, pois estava ao telefone. Mais encomendas, na certa. L’argent entrando nos cofres, tive a certeza. Percebi que suprimentos de informática, em tempos pandêmicos, têm demanda e clientela garantidas.

Enfim, recebi os cartuchos (acabei comprando dois), o pacote de folhas A4 (já que ali estava, levei também a celulose) e retornei ao carro. Missão cumprida.

De lá, fui ao supermercado. No caminho, para minha estupefação, testemunhei muita gente sem proteção. Máscaras? Puff, o povo nem aí! O estabelecimento, por sua vez, estava movimentado. Pessoas passeando entre as gôndolas como se caminhassem nas praças. Da minha parte, como tenho foco teleobjetivo, apurei-me nas compras de subsistência e retornei ao lar. Aliviado, imprimi o que faltava. Uma hora depois, fui ao correio e sacramentei minha inscrição no edital.

No dia seguinte, precisava dar prosseguimento a outra atividade laboral externa. Entrei no carango. Nos primeiros vinte metros, senti um sacolejar estranho. Dei a volta no quarteirão, retornei e estacionei, no mesmo lugar. Estava murchinho o pneu traseiro direito. O desânimo bateu: “ah, nem, trocá-lo agora não vai dar”. Era sexta-feira à tarde, movimento na rua, sol na cachola. “Amanhã cedo, eu resolvo”, decidi.

Cumprindo a promessa, bastou amanhecer e lá fui eu. De bermuda, camiseta e boné, sem desodorante, nem banho tomado, animei-me. Como não tenho garagem, o carro dorme na rua. O movimento estava razoável – alguns motoboys, carros e transeuntes, com seus cães a passear. E micos. Sim, meu bairro é urbano, mas está repleto de macaquinhos. São lindinhos demais! Uma bióloga daqui os mapeou e desenvolveu estudo muito bacana. Eles vivem a perambular entre os fios dos postes e a saltar entre árvores e telhados. Passam a vida inteira sem descer à rua, e podem ser facilmente observados. Nós, moradores, os adoramos. Felizmente, em mais de década, nunca vi alguém os maltratando.

Voltando ao fato automotivo, retirei o macaco do porta-malas (está explicado porque me lembrei dos micos), montei o triângulo, peguei o step. Tenho este carro faz dois anos e nunca precisei trocar o pneu. Ou seja, desconhecia o estado do macaco. Acreditem, estava uma ferrugem só!

Valendo-me de força hercúlea, apolínea, gastei meia hora para tirar a roda do chão. Achei que quebraria a manivela. Quase: a peça se entortou todinha. Prejuízo de um macaco, claro, mas com esforço físico equivalente a duas horas de academia. Com dores nos braços, nas costas e faltando-me o fôlego, pensei no Covid-19. Não conseguir respirar é terrível!... Acalmei-me, recuperei o ar.

Finalizada a tarefa braçal, guardei os apetrechos no carango e retornei à toca. No frigir dos ovos, deu para exercitar o corpo e tomar um sol. Há “furadas” que são facilmente contornáveis, e proporcionam alguma benesse, não é mesmo?

Desde então, imprevistos não mais aconteceram. Agora, com o fim do ano se aproximando a galope, o desafio continua. Precisamos manter todos os cuidados, evitando aglomerações. Nada está vencido, estamos ao meio da batalha.

Não tenho dúvida: a frase “não está fácil” é, disparada, a mais falada do ano. Trocando ideias com amigas e amigos, vejo que duas palavras também foram reincidentes: sanidade e resiliência. Quanto significado envolvido nisso! Poderíamos desenvolver tese.

Como dois mil e vinte voou! E como demorou... Dois mil e vinte e um está próximo, mas os caminhos seguem incertos. O “novo normal” há de surgir. Breve, o encontraremos. Que sigamos pensando e trabalhando por um mundo melhor sem, nunca, esmorecer e perder a consciência do dever.


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