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A cura.

A cura.
Katia Aparecida da Silva
out. 14 - 3 min de leitura
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A Cura

Em algum apartamento do prédio ao lado, uma criança chora desesperadamente; em outro, uma mulher murmura como se pedisse piedade. Tento descobrir, olhando para os prédios ao redor, de que janela viriam os supostos abusos. Sem sucesso!  

Você deve achar que moro em algum bairro de baixa renda, onde tudo isso é “normal”. Você está certo quanto à segunda parte, porém, moro em um bairro de classe média alta. E nem sei se me concentro nas crianças ou mulheres, que acredito eu, pedem socorro. Mas da minha casa, nunca consigo ajudar, por não saber de onde eles vêm.

            Fico a pensar… por que quem mora no apartamento ao lado, em baixo ou em cima, não denuncia? Talvez estejam ocupados demais, tentando superar os próprios problemas.

            Essa quarentena expõe o quanto as famílias estão doentes; eu, com certeza, só posso falar por mim e meus filhos, que são dois, um de 26 e outro de 22 anos. O mais velho, há dois anos, vive na moradia da faculdade que frequenta. O caçula mora comigo, ainda precisa de mais tempo e apoio para ser independente, fato que gostaria de lhe explicar: há oito anos, meu caçula começou a demonstrar problemas de convivência, que, por minha ignorância, foram vistos como resultado de uma rebeldia da adolescência. Isso gerou um desgaste familiar sem precedentes. Eu e o irmão enfrentamo-lo radicalmente, o que resultou em mágoas e brigas tamanhas. E, assim, todos os nossos laços — antes harmoniosos e amorosos, foram estilhaçados. A convivência tornou-se insustentável. Depois de diagnosticado bipolar, foi tratado, adquirindo novamente a sua serenidade, mas nossa família nunca mais foi a mesma.

            Quando a quarentena começou e nós três ficamos presos em casa, eu realmente me preocupei. No primeiro dia de confinamento, eles já estavam se enfrentando, em uma disputa desgastante pela minha aprovação, regada a ofensas e xingamentos. A solução foi o isolamento acompanhado, cada qual com a sua companhia virtual. Mas após trinta dias e com o prolongamento da quarentena por mais trinta dias, percebi que a ansiedade, a depressão e a solidão estavam nos consumindo. Tínhamos dois males a enfrentar: o vírus e o rompimento velado do nosso elo familiar.

            Chamei os dois para uma conversa e expliquei a gravidade da situação e a necessidade de um entendimento e colaboração, para a saúde mental e o bom funcionamento da casa.

            Nos primeiros dias, a conversa só serviu para nos deixar com medo de nos magoarmos. Então, comecei a pedir ajuda para cozinhar e percebi que nos descontraíamos na cozinha. Estendi esses momentos juntos, variando entre filmes escolhidos cada vez por um de nós.

            Lá se foram sessenta dias, e sabe? Estamos vivendo, uma realidade estranha, é verdade — nosso mundo agora se resume a três cômodos e três pessoas. Sem os amigos, parentes ou namorados, descobrimos o quanto somos bons juntos! Criamos uma rotina de integridade e colaboração e, sem perceber, enfrentamos e estamos curando nossas feridas. Irão ficar as cicatrizes. Porém, serão só para que nos lembremos de como o amor se fez remédio.

            As pessoas que entraram nesta casa no início da quarentena, nunca sairão. Elas não existem mais.

 

 


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