Estou enterrado na Rua da Glória
Lembre de mim se passar por aqui
Sou fato oculto da tua história
Mas veja ainda estou aqui
(Rua
da Glória, Aloysio Letra)
São
Paulo, Praça da Liberdade. No início da descida da Rua dos Estudantes, em meio
ao burburinho, do lado direito se avista uma ruazinha sem saída; mede uns 100
metros de extensão. É a Rua (antigo Beco) dos Aflitos, que termina numa capela,
muito simples, erguida em taipa de pilão. E pede uma reforma. É conhecida como a
Capela dos Aflitos. Na entrada se lê “Cemitério de 1775 a 1858”. Escondida, meio que
sufocada pelo dinamismo econômico da região, começa a ser visibilizada.
20 de setembro de 1821. Largo da Forca, atual Praça da
Liberdade. O soldado Joaquim José Cotindiba é enforcado. Depois, chega a vez do
cabo Francisco José das
Chagas, (o Chaguinhas). A corda é colocada em seu pescoço; o carrasco a puxa,
mas ela se arrebenta. Chaguinhas cai. O povo grita: “Liberdade!” e, seguindo
o costume para essas situações, pede clemência e a comutação da pena. As autoridades
negam. Repete-se o processo. Novamente a corda arrebenta. O povo grita:
“Liberdade!”; “Milagre!”.
Dizem que na terceira tentativa foi
usada uma corda de couro. Várias as versões sobre o que aconteceu em seguida,
mas a verdade é que Chaguinhas estava morto (e o povo não esqueceu) e teve o
mesmo destino daqueles que “eram enterrados pobres, escravizados, criminosos e
indígenas” (conforme se lê na entrada da capela): o Cemitério dos Aflitos, que ocupava
a quadra formada pelas atuais Rua Galvão Bueno, dos Estudantes, da Glória e
dando de fundos para a Radial Leste.
Nesse quarteirão da
morte estava a Capela dos Aflitos. Antes de seu martírio, Chaguinhas lá esteve
preso. Hoje, quem adentra o sacro recinto vê os devotos baterem três vezes numa
porta onde foi sua cela; fecham os olhos e fazem um pedido. Muitos são os
bilhetes, uns com pedidos, outros, em sinal de agradecimento. E acendem uma
vela.
Todo primeiro sábado de
cada mês se realiza o terço do Chaguinhas, que, aliás, é motivo de um projeto
de lei da deputada Leci Brandão com o intuito de torna-lo
Patrimônio Cultural Imaterial do Estado.
Mas, afinal, o que
fizeram Cotindiba e Chaguinhas para terem tal destino?
Integrantes do Primeiro
Batalhão de Caçadores da cidade de Santos, e envolvidos nas lutas pela
independência do país, lideraram um motim que reivindicava o pagamento de soldos
atrasados e a equiparação no tratamento dispensado a militares portugueses e
brasileiros.
Em 1858, inaugurado o
Cemitério da Consolação, o dos Aflitos foi extinto e o bairro da Liberdade continuou
a ser uma região de vivência da cultura negra na cidade, conforme vem se
comprovando; inclusive abrigou a Frente Negra Brasileira (FNB, criada em 1931),
na Av. Liberdade, e as escolas de samba Paulistano da Glória e Lavapés Pirata
Negro, essa, ainda em atividade. Ali viveu, também, Madrinha Eunice, precursora
do samba em São Paulo e que ganhou uma estátua na Praça.
A Liberdade foi
adquirindo uma feição oriental com a chegada dos imigrantes, sobretudo
japoneses e chineses, como hoje se vê pelas ruas da região. Assim como o
cemitério, onde eram enterrados os corpos das pessoas socialmente excluídas e
que ficou sob os edifícios comerciais que ali foram erguidos, quiseram enterrar
também os elementos da cultura negra da região. Mas eles vêm sendo desenterrados.
A capela desde o início lá esteve; sobreviveu (e junto a ela, o culto a Chaguinhas). É um
baluarte.
Em 1979, a capela é tombada pelo Conselho Municipal de
Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São
Paulo (Conpresp) e pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,
Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). Resistiu
a um incêndio na década dos 1990. No ano de 2011 um projeto de restauro foi aprovado, mas abandonado.
Providencial foi a
criação da Unamca - União dos Amigos da Capela dos Aflitos – em
2018 e, na sua esteira, a reivindicação do restauro da capela. Pressão sobre a
Prefeitura, a Cúria Metropolitana, os órgãos do patrimônio histórico,
autoridades, deputados e vereadores.
A
estrutura da capela vinha sofrendo danos devido a um imóvel que estava sendo
demolido para dar lugar a um centro comercial, irregular, por sinal. Em 2018,
sob os escombros, sete ossadas foram encontradas. O terreno tornou-se de interesse
arqueológico e a obra embargada. Nas prospecções objetos de matriz africana
foram resgatados, além de mais duas ossadas.
Resgate não só de corpos
e objetos, mas da memória negra do bairro. A partir daí o movimento em prol da
capela se fortalece e o seu comandante é Chaguinhas.
No mesmo ano, 20 de
setembro de 2018, o jornalista e escritor Abilio Ferreira realizou o primeiro Cortejo
em Memória de Chaguinhas. E vieram outros nos anos seguintes.
Os nomes da praça e da
estação do Metrô mudaram para Japão-Liberdade. Nenhuma menção à negritude do
bairro.
A luta pela valorização da capela e, junto, contra o
apagamento das vivências negras levaram à aprovação de uma lei, de 2020, que
prevê a criação do Memorial dos Aflitos, com a desapropriação do terreno onde
foram encontradas as ossadas, tornando-o de utilidade pública. No mesmo ano, a área do Cemitério dos Aflitos foi
cadastrado como sítio arqueológico pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan).
O projeto do Memorial
foi apresentado em 2023 pela empresa vencedora da licitação; ficará ao lado da
capela, ligando a Rua Galvão Bueno à Rua dos Aflitos, inclusive com um mirante de
frente para a capela, que sofrerá reformas na iluminação e na parte elétrica, além
da proteção contra incêndios. A fachada, o gradil e o velário serão
reconstruídos.
No Carnaval de 2023
Chaguinhas foi o enredo da Escola Mocidade Unida da Mooca, com o título "O
Santo Negro da Liberdade". Pouco depois, a praça (mas não a estação do
Metrô) foi rebatizada para Liberdade África-Japão.
Espera-se
que sob os escombros de um lugar, que foi a primeira necrópole pública da
cidade, fique enterrado o racismo imperante em nossa sociedade e se desenterre
e emerja a história negra do bairro da Liberdade, na convivência de duas
diferentes culturas em um mesmo território; rica oportunidade de mútuo
respeito.