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Ecos de liberdade no cinema negro gaúcho – Uma conversa com Cleverton Borges

Ecos de liberdade no cinema negro gaúcho – Uma conversa com Cleverton Borges
Marco Aurélio
mai. 12 - 12 min de leitura
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Troquei uma ideia com o cineasta gaúcho Cleverton Borges sobre suas experiências audiovisuais em Porto Alegre. Nessa troca, conversamos sobre seus mergulhos no universo do som no audiovisual e suas incursões no movimento negro sulista, principalmente com o estrondo do pré-candidato ao óscar, O caso do homem errado (2017). Atuando em múltiplas frentes ­– produção, roteirização e direção ­– Cleverton vem fazendo uso das narrativas audiovisuais para contar histórias que a história oficial vem tentando apagar.

Pra início queria saber da sua relação com o cinema na infância e como isso te direcionou a trabalhar com audiovisual.

Uma das influências de infância e adolescência que inspiraram meu trabalho com cinema foi assistir séries negras americanas que passavam no SBT. Essas séries começaram a me interessar por assuntos relacionados a raça também. A MTV me foi uma outra referência porque em alguns programas mostrava o processo de produções e os making ofs. Desde então queria entender um pouco mais do funcionamento da produção audiovisual. Sempre achei interessante entender as delimitações políticas no ato de fazer pertencer ao formar um diálogo direto no audiovisual. Entendo que é a partir dele onde a grande maioria das pessoas se educam politicamente. Muitas vezes não é no estudo formal das pesquisas em livros e sim por filmes que a politização acontece. Muito disso me fez acreditar no cinema, ao ponto de pesquisar e querer produzir com pessoas com o mesmo discurso do que o meu. Esse foi o despertar do cinema pra mim, de querer estar presente nessa área e entender que o processo criativo molda também quem cria.

Decidi fazer cinema porque queria contar a história das pessoas que nunca vi nas telas. Eu sou de Porto Alegre, sou gaúcho. A tv regional daqui passava um tempo atrás as Histórias Curtas, que era tipo um programa que exibia um curta de produção gaúcha por final de semana. Essas produções nunca falavam das pessoas negras ou quando falavam era sempre no conto sobre o neguinho do pastoreiro, uma lenda urbana daqui. São histórias apegadas a mitos regionais que ainda retificam esse racismo sulista. Eles apresentam isso diretamente como se fosse algo natural e cultural, mas isso é pesado para crianças. Parece que não existe responsabilidade para esses produtores, diretores, roteiristas; eles não sentem na pele. Há uma questão de deixar negras e negros animalizados e isso acaba vinculando as pessoas pretas do sul na falta de referências.

Sabendo do histórico de resistência negra no sul, como você sente esse cenário refletindo na criação de audiovisual da região?

Pego como exemplo uma de minhas amigas, a Camila de Moraes: o pai dela, Paulo Ricardo de Moraes, era atuante nos movimentos negros. Ele andava com o Oliveira Silveira – idealizador do 20 de novembro ­– e assim como ele participava de rodas de conversa e palestras. Isso tem muitos reflexos nos filmes dela, na maneira como ela retrata toda essa política que viveu na infância.

Um tempo atrás estava gravando um evento que é o Sopapo Poético, um movimento do Oliveira Silveira, que retrata a cultura afro-brasileira ao trazer referências positivas de pessoas negras. Nesse encontro as pessoas presentes leem poetas negros e declamam seus próprios textos também. É um sarau fenomenal que acontece faz uns oito anos aqui em Porto Alegre. Foi lá que conheci a Vera Lopes, a Camila de Moraes e o Baiano, o pai da Camila. O espaço de diálogo criado pelo movimento negro nos fez entender que o racismo aqui acontece muito duro: dá pra tocá-lo, vê-lo e senti-lo. Não é algo escondido do tipo ‘dá o tapa e esconde a mão’, os brancos fazem questão de parecer e ser racistas. Isso se reflete no audiovisual na forma que eles nos tratam quando começamos a trabalhar, desde ver aquelas histórias que não nos retratam e até nos machucam pela forma que são contadas. O movimento negro trouxe essa autoestima de contar nossa história e trazer nossas próprias narrativas. Ele impulsionou a voz de pessoas que queriam e precisavam falar.

Como foi trabalhar no Caso do homem errado (2017), considerando toda repercussão nacional e internacional que o filme teve?

O caso do Júlio César na época que aconteceu já tinha gerado muita repercussão porque os amigos dele eram do movimento negro e alguns eram jornalistas. Juntos eles se esforçaram a desvendar o caso até acharem o culpado.

Quando nós lançamos o filme organizamos uma marcha da Esquina do Zaire até a Cinemateca Capitólio. A Esquina do Zaire é um local conhecido do movimento negro, era lá onde aconteciam os primeiros bailes charmes; a Cinemateca Capitólio é uma das salas de cinema mais tradicionais da cidade. Foi uma marcha que parou o centro, virou notícia e repercutiu bastante aqui na cidade. Trinta anos depois a gente faz esse filme e retorna essa mensagem. Foi bastante forte. Quando descobriram a produção do filme começaram a ameaçar o produtor, porque sabiam que ele ia contar aquela história novamente. Foi muito positivo e muito bonito ver esse filme acontecendo, porque todas as vezes que ele foi exibido em Porto Alegre a sala estava cheia: com as pessoas dos movimentos negros, pessoas negras egressas das universidades e toda a comunidade negra. Todos queriam assistir aquele filme e aquela história. Então o cuidado ao realizar ele foi uma estética diferente. Foi um filme totalmente de coração.

Pra mim tudo foi muito significativo porque ele mudou toda a minha perspectiva de fazer filmes e a minha carreira completamente.  O filme me fez pensar num cinema mais voltado para a comunidade negra aqui no sul. Todos meus filmes de carreira agora são voltados para essa comunidade. Essa experiência amarrou toda a minha vida, desde o propósito que tenho de fazer filmes com histórias de pessoas que são esquecidas aqui no sul.

Originalmente fizemos um filme para impactar a nossa comunidade daqui e quando vimos ele estava rolando o Brasil inteiro e do nada ele é pré-selecionado ao Oscar. A gente foi longe demais! E fico feliz porque apesar de serem passos que realmente não imaginavamos que iam acontecer, eles aconteceram de uma forma muito natural. A partir de uma história nossa o filme começou a se expandir pelo Brasil inteiro. Em todos os lugares as pessoas se identificavam porque eram histórias muito comuns para as pessoas pretas. Aí vemos a forma como o genocídio da população preta é presente, porque apesar de ser uma história atípica muito dela acontece ainda hoje.

Como tem sido o processo de criação do seu projeto mais recente, a série Centro liberdade?

A série conta a história de uma jovem que começa o seu estágio num centro comunitário de uma periferia aqui do sul. Meses antes dela chegar lá acontece o assassinato do antigo presidente. Isso começa a desmantelar o centro e o governo quer troca-lo de lugar. Nisso a jovem começa a se relacionar com os moradores dali em volta e a descobrir outras histórias sobre o ocorrido. Com essas investigações ela descobre que na verdade o assassinato não foi um latrocínio mas sim que mandaram matar o presidente; e quem mandou matar está dentro do centro. É um processo que estou dentro demais. Tive numa reunião com o Renatinho Dornelles, líder comunitário daqui, falando sobre a ação das comunidades e o tráfico de drogas para tentar ser o mais verossímil possível com a realidade das favelas daqui. Realidade que é diferente das favelas cariocas, por exemplo. É uma outra experiência a questão dos morros daqui do sul. Até geograficamente na questão das casas e na posição das periferias.

É um projeto que também está tomando uma proporção muito grande. A série foi aprovada num edital, e agora vamos ter grana pra produzir ela. Sou diretor e roteirista dela. É um projeto então que eu estou pegando um carinho ainda maior.

Eu me vi muito dentro dessa realidade, tem uns familiares meus que são líderes comunitários aqui na zona sul de Porto Alegre e são presidentes de associações também. É uma história que estou familiarizado de saber como funcionam as coisas. Então o processo pra mim é muito mais delicado porque estou contando histórias de pessoas que são oriundas de onde vim e tem uma história parecida com a minha.

É muito fácil e muito difícil fazer essa série de uma forma que não fique muito caricata, ou de uma forma pejorativa. Em todo momento eu me pego em momentos delicados pensando se isso está ofendendo alguém, se isso está incoerente ou condizente com a realidade representada.

Pouco se fala sobre o som no cinema, pensam mais na questão visual. Como você vê seu trabalho com o som?

Eu vejo o som muito como o sentimento da imagem. É ele que muda a sua percepção dela e de uma história. Se temos uma tela preta e está passando uma música romântica, já podemos supor o que vai acontecer. Olhar o som ao redor que existe no processo de estar presente numa localidade é único, porque cada lugar tem um som diferente. Trazer isso pro cinema pra mim é muito mágico.

As pessoas não são tão críticas com o som porque elas a grande maioria só vai notar que tem algo errado se o som estiver ruim. Muitos não vão notar quando ele estiver bom ou se ele encaixou tal momento com a trilha. Som é muito desse material invisível.

A minha experiência de fazer cinema, ser negro e fazer som é muito desse processo de ser invisível ao trabalhar. De não ser escutado por todo mundo. E isso é da minha criação, eu sempre fui uma pessoa de escutar e ouvir, de estar muito atento ao que as pessoas estão falando. Contar as histórias que conto pelo som é muito de respeitar as pessoas que estão falando, de captar o som e de editar para deixá-lo o mais natural possível, sendo verossímil com o que escutei no processo de captação. Esse processo é muito íntimo pra mim ao ser verdadeiro com as pessoas que eu estou escutando. Preciso entender as nuances que essas cenas estão propondo para criar algo que case legal com esse sentimento que sinto no momento da cena.

Eu vejo muito o som como o sentimento do filme, como a emoção. Se vai me dizer se o filme é engraçado, se é duro. Pra mim quem edita o rumo não é nem o roteiro, é o som mesmo. O trabalho que mais gosto de fazer é o documentário, porque é o mais inesperado na hora da gravação. Nunca sabemos o que vai acontecer, o filme acontece na sua frente. Não é nada propositalmente redigido. Sei que existe uma pesquisa, uma entrevista, mas o documentário é totalmente espontâneo.

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