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Um Milhão de Olhos

Um Milhão de Olhos
Guilherme de Martino
abr. 21 - 34 min de leitura
010

O senhor Jota saiu para o trabalho um pouco mais tarde do que sua hora matinal habitual. Tempo ameno, mas vai esquentar. Jota ajeitou os óculos e olhou ao redor apreciando o recorte de céu anguloso entre os topos de prédios. O trânsito também acabou de acordar e os veículos fazem aquele característico zumbido crescente e contínuo. O ruído branco da cidade. Como bom cosmopolita que é, senhor Jota segue pela velha calçada trincada de seu bairro, sentindo-se adaptado. Olhando a avenida próxima, repara o movimento de gente apressada indo para o trabalho. Termina o lanche que preferiu comer na rua mesmo, limpa os lábios no guardanapo, amassa-o e arremessa no cesto de lixo próximo.

Dona Lurdes passa correndo por ele, ao ver seu ônibus passando lá na esquina. Dona Lurdes está atrasada de novo. Dona Lurdes perdeu o ônibus de novo. Seus ombros caem de frustração e ela se volta. Abre os braços, evasiva, e faz caretinha de resignada ao passar pelo senhor Jota. Agora ela terá que ir até a rua de trás e pegar o 211, que vem sempre lotado. Cheio de gente espremida como bagagem.

Para o senhor Jota não é tão sofrido: ele vai de metrô. O metrô também vem lotado, mas tem as pequenas malandragens como ir até o fim da plataforma e pegar vagões mais vazios. Menos cheios. Ou esperar o trem seguinte, que geralmente está menos entupido de gente até que o outro trem seguinte venha novamente lotado. Mas hoje não. Hoje até os vagões do fim da composição estão bem cheios. Cheios de gente espremida como bagagem. Gente que balança pra frente e pra trás conforme o trem se move. Por que não colocaram um vagão a mais na composição. Um dia isso vai ser necessário. Ou será que não? Será que vamos precisar de uma maternidade maior? Será que os fabricantes de papel higiênico têm tido aumento em seu faturamento? E o trem segue cheio de gente. Gente que desce toda na mesma estação central e continua no passo aflito tentando contornar quem está na frente para chegar logo.

 

O senhor Jota se levanta de sua mesa para esticar as pernas, soltar suas emanações no corredor e tomar o cafezinho que dona Márcia faz todas as manhãs. Arruma os óculos em cima do nariz e olha pela janela do sexto andar. Observa absorto o cardume de gente pelas calçadas esperando o cardume de carros parar e eles atravessarem.

Se estivesse no décimo andar ou mais acima, senhor Jota estaria pensando nas pessoas como formigas atravessando vias estreitas. Formiguinhas. Mas ali no sexto andar, ainda era possível vislumbrar facilmente as figuras humanas, com perninhas se alternado para andar e as cabecinhas em cima, e ainda assim o conjunto de pessoinhas inevitavelmente formava um grupo, um conjunto de fluxo contínuo, um amálgama desprovido de individualidades.

Mesmo à distância o espetáculo acabava sendo enervante em seu magnetismo monótono. Mesmo distante da massa, Jota fazia parte dela e em mais algumas horas estaria entre ela de novo, na volta para o metrô, na volta para casa, completando seu ciclo só para começar de novo amanhã, como sempre foi e deveria ser. Os olhos de Jota avançam um pouco, escapam da corrente e vão descansar nas copas das árvores da praça ao lado da avenida.

O senhor Jota acordou meio fora do horário de novo. Seu celular não se engana, mas o relógio da cozinha estava uns quinze minutos à frente. Senhor Jota saiu para a rua outra vez terminando seu lanche matinal. Lá na frente, na esquina, dona Lurdes fazia sinal para seu ônibus que freou no ponto. Dona Lurdes não estava atrasada hoje. Jota limpa os lábios e arremessa o guardanapo no lixo. Mas o papel quica no monte de papéis que entopem o cesto e resvala para fora caindo na calçada. Por que ainda não colocaram um cesto maior?

Jota atravessa a avenida, por entre os veículos que buzinam, para chegar à entrada do metrô. Escadas rolantes cheias. Pessoas tropeçando nas pessoas que demoram em sair da frente da esteira móvel da escada. Plataformas cheias.

Quatro trens depois e Jota ainda não havia conseguido embarcar. Outro trem se aproxima, fazendo vento, empurrando cheiro de ar velho pelo túnel até a estação. Freia. Apita. Abre as portas e Jota é levado espremido na massa de gente que precisa entrar no vagão de qualquer forma. E entra.

Jota tem que se segurar em algum apoio e fica estendendo ridiculamente um braço em tentativas de fisgar um dos canos de apoio. Finalmente se enfia entre os passageiros em um amassamento quase erótico e consegue segurar a barra horizontal acima de sua cabeça. E segura com as duas mãos, veja que triunfo! Mais gente atrasada se espreme para dentro do vagão e Jota é ridiculamente levantado. Os pés perdendo o contato com o chão. Parece uma folha prestes a ser levada por uma enxurrada. Um trapezista de metrô. Hora de comprar um carro, senhor Jota? Pode ser, mas trocar o entupimento de gente nos vagões pelo entupimento de carros nas avenidas pode ser uma manobra que apenas irá render desvantagem financeira. E o trem solta seus relinchos de metal pelos túneis escuros, acelerando para a próxima estação, carregado de gente espremida.

 

O senhor Jota se levanta de sua cadeira ao sentir o cheirinho do café de dona Márcia. Ela se antecipou hoje ao relógio biológico de Jota. E ele faz seu tradicional desligamento mental diante da janela. Aquário de gente. Cardumes de cabecinhas se deslocando, hoje, ao que parece, sem esperar por convenções de trânsito e avançando por entre os veículos que buzinam, brecam e aceleram, caoticamente. Podiam ter feito as avenidas mais largas. Ou podiam ter aumentado o metrô e reduzido a quantidade de carros. Ou reduzido a quantidade de gente na maternidade.

 

 

O senhor Jota saiu para o trabalho um pouco mais tarde do que sua hora matinal habitual. Tempo ameno, mas vai esquentar. Jota vai pela velha calçada trincada de seu bairro, olhando nas avenidas próximas, mas não reencontra o movimento de gente apressada indo para o trabalho. Hoje a rua está deserta. Ou quase, alguém passa correndo pela esquina e some de vista na esquina seguinte. Jota termina o lanche que preferiu comer na rua mesmo, limpa os lábios no guardanapo, amassa-o e arremessa no cesto de lixo próximo repetindo seu gesto maquinal. O cesto está coberto por um descomunal monte de papéis amassados iguais aos que ele jogou ontem e jogará amanhã. Da sarjeta até a boca do cesto, um monte de papéis se acumulou. Algo está diferente na paisagem urbana que Jota conhece tão bem. A cidade respira em outro tom... As massas de ar se movem diferente e levantam papéis, amassados ou abertos. A cidade vibra de forma irreconhecível. Não há carros produzindo o zumbido contínuo. Jota atravessa a avenida indo para a entrada do metrô e estranha até o murmúrio do ar entre os edifícios. O murmúrio agora é um rosnado vindo de algum ponto indefinível.

À porta do metrô, Jota hesita pela primeira vez em descer as escadas. O ar que dali emana é um hálito que vibra igual ao ar dos prédios. Um murmúrio indefinível. Jota avança mecanicamente, ainda preocupado com o horário de entrada na empresa, e encontra bilheterias vazias. Nenhuma fila. Ele salta a cancela e vai até a plataforma. Plataformas vazias. Hoje não será preciso ir até o último vagão... Curvando o pescoço para ver o fundo do túnel, Jota começa a se inquietar. Olhando ao redor pela estação vazia de pessoas, faz um rápido reconhecimento do espaço. O espaço é o mesmo, mas não a atmosfera, cheia de ecos irreconhecíveis. Por que esperou tanto para se preocupar, Jota? Até aqui, achava que estava tudo em ordem? Claro que não achava. Claro que o enigma era incomum e preocupante, e agora mesmo, diante da abertura do túnel, Jota sente o estranho murmúrio do ar concentrado vindo até ele. Seria o trem? Talvez não. O trem é um alarde sonoro, um escândalo de ferragens se chocando e atritando. Um som bastante eficiente para fazer os passageiros se afastarem da linha de segurança e evitar acidentes embaraçosos para a companhia. Agora, esse som que Jota presenciava era algo indescritível em sua natureza orgânica e subterrânea. Era o som irregular de uma outra massa se aproximando. Uma massa de movimentos incertos e não a conhecida aceleração em linha reta. E o deslocamento de ar que chegava a estação era quente e exalava cheiro de suor. Não acha melhor voltar à rua, senhor Jota? Não acha melhor sair correndo desse buraco antes que alguma coisa aconteça?

 

No corredor de saída, Jota sente o som vindo do túnel, aumentar atrás de si, assim como o odor misturado de suor e bolor subterrâneo que acaba de ser remexido e levantado depois de anos se acumulando nos cantinhos dos dormentes e parafusos. Um bolor que as rodas do trem nunca alcançaram, mas que agora está sendo tirado de seu recanto por alguma coisa... Cheiro de ”cobertor de cachorro”, pensou Jota tentando encontrar um equivalente familiar àquela sensação. Tomado de apreensão, mas ainda no exercício de seu autocontrole, ele sobe correndo e para na área de saída. As pernas formigando pelo inesperado exercício. O coração subindo para o colarinho. Alguns passos cautelosos pela calçada e Jota finalmente é tomado por um sobressalto. O baque profundo em algum lugar de alguma via do subsolo faz o asfalto tremer irradiando uma vibração que alcança seus pés. Corre ou fica, senhor Jota?

A tampa do bueiro diante dele treme e começa a ser levantada por alguma coisa. Alguma coisa saía de lá de baixo vindo para a rua. Um braço aparece sob a tampa e se apoia no asfalto com a mão aberta. Um braço humano nu seguido de... uma perna ao seu lado. E mais outro braço formando um trio incoerente. Jota se curva para frente com o medo dando espaço à curiosidade por um breve momento. Entendeu, Jota? Braço, perna, outro braço e agora duas cabeças humanas! Com olhinhos fechados e risinhos insanos, fazendo volume e ajudando a empurrar a tampa para cima e para o lado. Um conjunto que desafiava a compreensão continuou subindo pelo buraco redondo do bueiro fazendo a tampa de ferro cair sobre o asfalto com um tilintar pesado e medonho que ecoou pelas ruas sem gente e sem carros. Dois alarmes simultâneos dispararam no inconsciente de Jota. Um dizia: Coooorre, idiota! E o outro: O que é você?

Jota aperta os olhos e segura os óculos para tentar ver melhor. A coisa continua saindo do bueiro depositando-se sobre o asfalto como um tentáculo composto de partes humanas grudadas sem critério! Mais pernas, mais cabeças, torsos, nádegas, costas, cabeças de novo e o tentáculo de gente que parecia não ter fim se contorcia como um membro único. O que é vocês? Impossível responder e o alarme de “corra, idiota” soa mais alto. Jota começa a se mover lento, passo a passo, com medo de ser notado. O que poderia acontecer se fosse notado? Esqueça isso, Jota, vá em frente. Uma rápida olhada para trás e o tentáculo estava ainda se levantando pelo bueiro e se acumulando na rua, esparramando-se conforme a área disponível. Um cilindro mole sendo expelido do bueiro ia tomando a via pública e se acumulando em uma massa disforme feita de... pessoas. Ou partes de pessoas em uma montagem errada. Era difícil encadear pensamentos lógicos ou conclusivos para Jota. Outra rápida olhada e o pobre homem sente a temperatura gelar muito em suas costas e as pernas paralisam ao fazer contato visual com uma das cabeças. Olhinhos arregalados o encaravam. A boca torta da coisa amontoada se abriu e gritou fracamente. Logo outras cabeças e outros olhinhos se voltaram para ele e diversas bocas começaram a gritar. Cabeças apareciam e se elevaram da massa, esticando seus pescoços como periscópios de carne. Alguma coisa se contorceu no estômago de Jota. Diafragma, refluxo ou ânsia de vômito? Depois eu vejo isso, agora é correr!

 

Jota virou a esquina em um beco e parou para respirar, a tensão subindo pelo pescoço e alcançando as têmporas. A coisa o estaria perseguindo? Seria veloz? Ele arrisca olhar pela esquina e vê a massa disforme se movendo impulsionada por centenas de braços e pernas que brotavam em sua extensão. Concentrava-se como um tentáculo, se precisasse, e espalhava-se quando havia espaço ao redor, preenchendo-o. Mas não obedecia a uma ordem com membros para baixo e cabeças para cima, por exemplo. Contorcia-se retraindo pernas e brotando braços conforme se movia. O mesmo para as cabeças que nem sempre pareciam ter consciência ou, de repente, acordavam e olhavam ao redor e logo voltavam à inconsciência sendo até mesmo absorvidas de volta à massa amorfa.

A coisa vinha atrás de Jota, mas não tinha pressa. Passou pela esquina do beco e foi adiante. Algum evento chamava sua atenção em outro lugar. Jota olhou adiante e viu um casal subindo em cestos de lixo para tentar uma fuga insana para algum lugar alto. Do cesto subiram em um container de lixo e dali tentavam o poste do semáforo, talvez para esperar um resgate. A coisa acompanhava a ação com dezenas de olhinhos e se aproximava. Em um movimento súbito a massa de gente grudada cercou o espaço em volta dos containers e do casal. O homem arremessou um saco de lixo na coisa que se retraiu para escapar do objeto. A coisa tem medo? Ele empurrou a mulher para cima e ela se agarrou ao poste escalando por braçadeiras e saliências. Braços brotaram da massa da coisa e seguraram o homem pela barra da calça. A mulher, usando o semáforo de pedestres de degrau, ainda tentava desesperadamente subir mais. O homem caiu e foi engolido ao som dos gritos de pavor da companheira, agora apoiando os pés em cima do semáforo e se segurando no poste de ferro, enquanto a massa disforme se acomodava embaixo, esperando.

Jota acompanhava a cena como um espectador de filme, sem poder fazer nada diante do roteiro pronto. Duas cabecinhas se voltaram para ele, encarando-o. Acho que você é o próximo, senhor Jota. Ele sente nova contorção interna e pensa para onde poderia correr. Ou subir.

A mulher finalmente despencou quando o semáforo quebrou sob seus pés e ela, sem forças para se agarrar ao poste, desceu junto. Caiu e sumiu no meio do volume de carne cujas partes se moveram, se separando, abrindo espaço para a nova companhia e fechando-se novamente para envolvê-la em um abraço de carne. Seguiu adiante em contorções, alternando seus movimentos inferiores para se locomover sobre o asfalto e emanando o hálito de mil bocas em um murmúrio contínuo. Agora mil e duas bocas, contando com os recém-chegados incorporados ao conjunto crescente que se esparramava pela cidade tomando o espaço, tomando as ruas, os porões, os subterrâneos e até o espaço aéreo com seu hediondo mantra vocal, aahhnnhaaahhnnn...

 

O sol das cinco horas projetava sombras inclinadas dos prédios quando Jota entrou em um beco de pouca luz. Precisava pensar em algo e depressa. Tentou forçar uma porta e depois outra, mas foi inútil. De volta a avenida ele vê a coisa por todos os lados. A coisa que dá um novo conceito de horizonte para a paisagem urbana. Jota não pode ficar aqui no solo ou será tragado também. Ele explora o beco, desorientado, assustado, quando uma janela do prédio estoura no primeiro andar, lançando para fora um novo membro de gente grudada. O volume cilíndrico vem violentamente para baixo formando uma unidade contínua, da janela até o chão. Contorce-se como uma cobra, tem diversas cabeças na dianteira protegida por alguns braços em volta. A queda deslocou postes de ferro e placas de rua. Uma outra janela, ao lado da primeira, também se quebra e novo volume desce até a rua. Pernas e braços amparam o impacto, mas ainda assim Jota sente a batida sobre o asfalto. Os dois tentáculos ondulam pelo beco vindo atrás dele. Movem-se em paralelo e começam a se fundir em um único volume, maior, mais grosso, mais aterrorizante em seu murmúrio abstrato contínuo.

Jota volta correndo para a avenida de onde veio, contorna a esquina rapidamente e escala um poste parcialmente quebrado, na tentativa de subir para a marquise de um estabelecimento próximo. O poste cede lentamente ao seu peso e Jota cai de volta na rua. O tentáculo vindo do beco, e a massa anterior que engolira o casal, se unem em um volume ainda maior. Cabecinhas acompanham a ação do homem sozinho. Mil olhos seguem sua corrida desesperada até ele subir em um carro avariado. Jota calcula que consegue pular da capota do carro e alcançar a marquise. Ele ouve, sob o carro, uma pancada metálica que balança o veículo e o desequilibra. Outra tampa de bueiro está sendo aberta. Outro volume de gente grudada está vindo para a superfície, empurrando o que estiver na frente. O carro balança e vai se deslocando para cima com Jota se segurando na capota! Em uma rápida olhada ele vê braços e pernas brotando debaixo do carro, empurrando o volume para cima e servindo como um elevador.

Jota aproveita o acaso e finalmente salta agarrando-se às ferragens da fachada de uma loja enquanto a massa se aglomera embaixo. Pinos e braçadeiras arrebentam ao seu peso e a fachada, mantendo a outra extremidade presa, tomba em ângulo. Ao cair, atinge a coisa que se amontoava logo baixo. Cabeças são esmagadas e braços decepados, sangue espirra pelas paredes próximas e mil bocas entoam um grito de dor e raiva. Braços se estendem para agarrar o teimoso fugitivo. A marquise tombada serve de rampa e Jota escala suas ferragens até o extremo mais alto, ainda fixo, antes que possa ser agarrado. Olha para baixo e vê o estrago pela queda da estrutura, braços e mãos decepados ficam para trás, abandonados na poça de sangue, quando a coisa se contrai e se cura rapidamente do acidente. As partes mutiladas são recolhidas em movimentos giratórios e partes saudáveis tomam seus lugares. Uma cabeça esmagada pala metade encara o homem com o olho que lhe resta antes de ser recolhida e Jota compreende que fez um perigoso inimigo.

De cima da marquise ele alcança o parapeito do prédio e chuta uma janela da sobreloja até quebrá-la. Uma olhada ao redor antes de entrar, revela uma paisagem de pesadelo para o solitário homem urbano. A cidade está tomada por diversas massas de pessoas grudadas que se aproximam e se aglutinam em um grupo crescente formando uma deformidade gigante entre os prédios. Tentáculos brotam de algumas partes e entram pelas janelas mais baixas. Jota ainda identifica algumas pessoas olhando horrorizadas pelas janelas de escritórios. Como ele, podem ser as últimas representantes humanas até a chegada da coisa. Duas pessoas caem, ou saltam da janela, na direção da massa inumana. Jota entra no prédio supondo que ali pode ser um bom esconderijo.

 

O senhor Jota tem um fim de tarde bem diferente do habitual. O sol está se retirando, as luzes vão enfraquecendo. Ele está cansado e faminto. Depois de alguns minutos recobrando o fôlego em uma salinha sem luz, ele começa a explorar o ambiente ao redor. O prédio está vazio e ele segue cauteloso por salas e corredores. A coisa lá fora continua projetando seu murmúrio e chocando-se com objetos, mas esses sons chegam a Jota, filtrados pelas estruturas. Ele sobe até o segundo andar pelas escadas. É um prédio comercial igual ao que ele trabalha. Um prédio como centenas de outros pela cidade. A lógica que se apresenta para o senhor Jota é irônica: um prédio que junto dos demais também forma um amálgama de unidades análogo à coisa rastejando lá fora.

Ele encontra uma salinha-refeitório que resolve a fome imediata com torradas, água e café. Um som de vidro estourando o sobressalta. Ele corre até uma janela e olha. Lá no asfalto a coisa se contorce e lança tentáculos para cima entrando em algumas janelas mais baixas. Três andares acima dele, um movimento chama sua atenção. Jota vê um homem inclinando-se para fora de uma janela quebrada. O homem acabara de quebrar o vidro e obviamente pretende saltar. Sua expressão de desespero revela claramente isso. Os olhos vidrados, a boca retraída em uma expressão demente. A expressão de quem perdeu a razão diante do indizível pesadelo, do inexplicável que infla sua mente de dentro para fora até o rompimento. Ele se lança ao vazio. Mas no exato momento do salto um tentáculo aparece atrás dele, pela mesma janela, e o agarra antes da queda. Dezenas de bracinhos o seguram pelas roupas, membros e cabelo e o puxam de volta. Ele acaba de ser salvo da queda justamente pelo monstruoso motivo de seu salto. Seu grito de pavor é interrompido bruscamente quando ele é tragado para o interior de seu salvador.

A coisa está no prédio e Jota precisa ser cauteloso. A noite está próxima e ele ainda não pensou em nada. Percebeu que mesmo com a força dos tentáculos que se projetam, eles não têm força para ir muito alto. Precisam se apoiar em alguma coisa. Se os tentáculos vierem até ele subindo por apoios como escadas ou o poço do elevador, ele até que pode se defender da ameaça em volume reduzido. Mas se defender com o quê? Com a cafeteira. Cadeiras. Ou um extintor... Se Jota chegar aos andares de cima e à cobertura, talvez possa esperar por uma solução ou resgate.

Apesar de não muito consistente, a lógica de seu rápido plano lhe é suficiente para um ligeiro conforto. A ilusão de que pode contornar o perigo e resolver. Resolver o quê? A palavra fica circulando em sua mente: resolver. Ainda à janela, ele perde alguns minutos estudando a monstruosidade que tomou a cidade. A coisa amorfa se adapta aos espaços. Preenche a avenida próxima e oscila como uma geleia feita de pedaços humanos em movimentos aparentemente espasmódicos e aleatórios quando em repouso. Mas a coisa consegue premeditar ações! Agora mesmo ela estoura as portas do mercado em frente ao prédio e entra. Parece estar adquirindo meios conscientes em suas ações. A porta de vidro pode ser uma ameaça se quebrada, então os bracinhos se aproximam com cautela, carregando um poste quebrado, e estouram o vidro a uma distância segura. Depois fazem o mesmo em uma vitrine. Com os espaços abertos, novos tentáculos se formam e entram no mercado. Logo os bracinhos estão carregando comida para fora. Jota acompanha o ligeiro festejo, horrorizado com as ações corriqueiras que agora ganham um aspecto de pesadelo pervertido em sua descabida satisfação. Boquinhas cheias mastigam alegremente as guloseimas das prateleiras. Garrafas de bebida são entornadas em bocas abertas de dezenas de cabecinhas aglomeradas. O murmúrio da coisa agora é alegre. Cabeças se beijam, membros se entrelaçam em abraços distorcidos, mãos apalpam áreas carnudas, línguas babam sobre costas, bocas mordem peitos, dedos somem penetrando orifícios, braços, pernas e torços em movimentos coleantes culminam em uma indescritível comunhão de contorções depravadas que escapam aos limites do julgamento de Jota.

Ruídos internos no prédio interrompem seus pensamentos. Sons de volumes golpeando atrás das paredes em algum lugar sobem ecoando pelos vãos das escadas. A coisa quer abraçar o senhor Jota. Ele corre até o vão da escada e se certifica que algo vem aí. As luzes lá embaixo oscilam e os sons se aproximam. Ele olha ao redor procurando algum objeto para usar como arma. Volta para a salinha do refeitório para ver se acha algum produto inflamável. Inútil. Armários vazios e ele terá que se virar com um extintor de incêndio. Corre de volta à escada onde uma ponta de tentáculo vem subindo. Três cabeças em cima olhando para Jota com sorrisos dementes e olhinhos arregalados, mãos abertas apoiando na parede e mureta, dezenas de pernas subindo os degraus. Ele dispara um jato do extintor nas cabeças que gritam de raiva e se afundam de volta ao volume de carne. Algumas mãos se agarram ao corrimão e à mureta da escada. Jota golpeia, esmagando duas mãos, decepando dedos e rachando o extintor. O tentáculo recua pela escada e ele arremessa o extintor, vazando perigosamente, em cima da criatura. O extintor explode mutilando brações e pernas, e afastando o tentáculo que se contrai escada abaixo. Jota recupera a confiança e volta a encadear o raciocínio. A coisa pode ser vencida, ela sente dor e pode ser avariada. A possibilidade de se salvar é concreta. É possível sim.

As portas do elevador se abrem às suas costas, empurradas por dezenas de mãos. Dedinhos se enfiam por entre o intervalo da porta e logo mãos e braços e volumes de carne estão se projetando pelo espaço e alcançando Jota. Ele foge pelo estreito corredorzinho de serviço perseguido pela massa de carne com dezenas de braços na dianteira. Jota golpeia o vidro de uma caixa de emergência com o cotovelo. Rasga a manga do paletó. Talvez tenha se cortado. Novamente é invadido por uma onda de esperança ao retirar um machado da caixa e empunhá-lo contra os braços estendidos que chegam velozmente. Golpeando para esquerda e direita, Jota se entrega à violência desesperada, decepando e mutilando mãos e braços. A coisa recolhe os membros inutilizados e devolve membros novos, mas vai cedendo espaço no corredor ao homem urbano, no momento convertido em um guerreiro primitivo em confronto com seu predador. Jota avança, pisando no sangue derramado, com fúria redobrada devido ao recuo gradativo do inimigo. Mais golpes e mais sangue despejado até que o tentáculo recua de volta ao poço do elevador e some na escuridão.

Ainda de machado em punho Jota espera por nova investida. Mas ela não vem. Vai até perto da escada para checar. Ouve os sons da coisa a uma grande distância. Saiu do prédio. Parece que não vai subir mais. Ele amolece os braços e começa a pensar em meios de destruir a coisa. A coisa toda. Seria possível? Se ela sangra e se despedaça, pode muito bem ser vencida. Mas ele não teria meios na situação em que se encontra. Líquidos inflamáveis? Seria até possível encontra-los pelo prédio, mas em que quantidade? E que tal improvisar uma bomba? Em último caso ele até que poderia ser um mártir atando a bomba ao seu corpo e se jogando na criatura. Não. Péssima ideia. O dano seria pequeno e localizado. Incapaz de alterar a situação no ponto a que ela chegou... Jota está cansado e a coisa parece que não vai voltar mesmo.

A coisa está esperando.

Jota senta-se em um canto do corredor. Batimentos cardíacos reduzem. Músculos voltam ao repouso, mas só até onde o medo permite, e isso já é uma margem muito boa considerando o dia que teve. Extenuado e sem alimento, Jota começa a vagar em pensamentos. As preocupações mais primordiais voltam a se formam em sua mente, agora como concentrações gramaticais tomando a forma de palavras insistentes que estiveram em seu inconsciente desde hoje de manhã. Fugir. Resolver. Destruir. Haveria como conversar com a coisa sem ter que destrui-la? Que ideia idiota...

Jota percebeu que a coisa precisa se alimentar, então se ela for mantida sem comida pode definhar e morrer. Ele também poderia definhar e morrer, e certamente assim aconteceria antes da criatura perecer visto que sua articulação e força são bem maiores que as dele.

Seria correto se referir à monstruosidade como criatura visto que ela se compõe de indivíduos? A coisa tem uma consciência centralizada ou obedece e comandos individuais? Poderia ser abatida durante o sono? Jota precisa dormir um pouco. As ideias estão se esgotando. Fraqueza e tontura aumentando. Os olhos estão pedindo para fechar. Que horas serão agora? Ele já deveria estar em casa dormindo... Sons aumentam lá fora por um momento. Ele vai até a janela e olha. Tudo igual a antes. A coisa emitindo seu murmuriozinho irritante, nhaaaannnhaaaannn... Sua superfície se move alternadamente, bracinhos e cabecinhas e perninhas vão e vêm, brotam e se retraem. Um monte de gente espremida como bagagem. Mais do que uma abominação ou uma monstruosidade, mais do que uma ameaça ou uma disfunção – a coisa é monótona. Irritante como a dor de cabeça que ele está tendo nesse momento. Jota compreende. Ele mesmo, que nunca fora um exemplo de dinamismo em sua vidinha convencional e acomodada, também é uma existência monótona. Jota não faz falta a ninguém e ninguém faz falta a Jota.

Ele sobe até a cobertura e às últimas luzes do dia contempla a imagem impensável da cidade tomada pela criatura ampliada. Um mar de carne se movendo entre os prédios e encobrindo todo o solo. Não há mais onde pisar nem para onde subir e Jota lembra com certa inveja das pessoas que presenciou pulando das janelas. Evitaram embates, estratégias e sofrimento para um fim mais rápido. Provavelmente eram outras existências monótonas que não se importaram nada em dar um passo janela afora.

Sonhar com resgate e solução pareceu ser a ideia mais inocente que jamais lhe ocorrera. Jota está vazio e seu corpo tremula fracamente. Sua mente conecta lógicas que jamais ocorreriam se estivesse em casa zapeando canais de TV. Agora já seria hora de preparar o sono e o recomeço do seu dia igualzinho fizera ontem e ontem e ontem. É inútil voltar para casa assim como é inútil iniciar outro dia de trabalho amanhã... Voltar para casa não é ir em frente. O processo é monótono. A coisa toda é monótona.

 

A lua sobre a cidade ilumina o cenário dando realces pálidos aos edifícios e janelas refletivas. Jota anda alguns passos em direção nenhuma sobre a cobertura até a mureta do edifício. Depois anda até outra mureta como um velho jogo pong com bateria fraca. As sombras se adensam entre os prédios à medida que a noite avança. Jota contempla inerte a vastidão vazia que tem diante de si. Prédios sem uso, noite sem cor, ar sem vento, indivíduo sem rumo. Jota sobe nos alicerces e alcança o limiar da parede final. Seu corpo oscila sem decisão diante da escuridão diante de si. A escuridão é um bom lugar para se esconder. Sua cabeça dói e a aspirina está lá embaixo. É só um passo para resolver.

Jota se deixa levar para o vazio obedecendo a um impulso inconsciente mais do que executando um salto intencional. Seu corpo cai molemente como um trapo e some nas sombras... Mas não bate na calçada e é amparado por um volume macio como um imenso colchão, quente como um corpo vivo, cheirando a suor alheio. A luz da Lua reflete o branquinho de seus olhos quando ele os abre. Ao seu lado, um milhão de olhinhos aceitam o novo integrante.

 

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