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Os quilombolas e o Dia da Consciência Negra

Os quilombolas e o Dia da Consciência Negra
Cassiano Ricardo Martines Bovo
nov. 20 - 12 min de leitura
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(Publicado originalmente no Justificando em 19.11.2019)

Por Cassiano Ricardo Martines Bovo [1]

20 de novembro, Dia da Consciência Negra. A pergunta é: como se encontram os remanescentes das comunidades dos quilombos, os quilombolas? [2]

A resposta demanda luta, solidariedade e reconhecimento, sobretudo quando temos um Presidente da República que disse: “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem pra procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gastado com eles”.[3] E ainda: “Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”.[4]

Potente reserva histórico-memorialista e de resistência, capaz de cobrir muitas lacunas de nossa história, a estonteante riqueza cultural dos quilombos, secularmente cultivada, contrasta com as dificuldades materiais e de sobrevivência que enfrentam, embora plenos de dignidade. 

Quilombo Santa Justina, município de Mangaratiba, Rio de Janeiro, região de belas praias frequentadas por milionários. Lá vivem 57 famílias quilombolas. Em pleno processo de reconhecimento formal, aproveitando-se de mudança do Plano Diretor Municipal, em 2011, que transformou áreas de conservação ambiental em áreas de expansão urbana, a Ecoinvest, ligada a políticos e empresários poderosos, invadiu a área, alegando tê-la comprado, para fazer loteamentos. Controlando violentamente o território por meio de seguranças (alguns deles, policiais militares da ativa e aposentados), impuseram pedágio sobre os verdadeiros donos do território, trataram de derrubar árvores com tratores e escavadeiras, drenaram o solo, cortaram luz e água e interferiram no escoamento da produção de seus moradores. 

Quilombo Mesquita, município de Cidade Ocidental, Goiás; mais de 785 famílias quilombolas vivendo em região de natureza exuberante, próxima a Brasília, o que, por si só, torna o local cobiçado. Desde a construção da capital a qualidade de vida de seus moradores foi terrivelmente impactada com a invasão de fazendeiros, empresários e moradores intrusos. Alvos de especulação imobiliária para construção de condomínios de luxo, capangas, capatazes e seguranças passaram a ameaçar e perseguir os moradores e dificultar sua locomoção. Reduziu-se significativamente o território dos quilombolas, afetando seu plantio e sobrevivência, inclusive a produção de sua famosa marmelada Santa Luzia.

Quilombo Santa Rosa dos Pretos, município de Itapecuru-Mirim, Maranhão, famoso pelas suas muitas manifestações artísticas e religiosas, além dos fortes laços comunitários que unem seus habitantes.[5] Ao menos 326 famílias vivem em 7.496 hectares de terra considerados estratégicos sob o plano econômico-governamental, o que tornou o seu território retalhado pela BR-135, Estrada de Ferro Carajás, Ferrovia Transnordestina e linhões de energia da Cemar e da Eletronorte, que levaram a desmatamento, assoreamento e escassez de água. Neste momento enfrentam o fantasma da duplicação da estrada, já tentada e paralisada anteriormente, e as perspectivas da passagem de um gasoduto.   

E a situação não é muito diferente nas mais de três mil comunidades de remanescentes de quilombos oficialmente catalogadas, embora se acredite que o verdadeiro número seja bem superior, uma vez que muitas vão sendo descobertas e estudadas, outras não têm acesso às burocracias para iniciar o processo de reconhecimento. 

Absurdamente aqueles que são os verdadeiros donos das terras, mas continuamente invadidos, são obrigados a provar que não são “invasores” como os que, de fato, são, alegam. “Atrapalhando” o progresso de face desenvolvimentista e desumana, costumam cruzar o caminho de grandes interesses econômicos que vão lhes reduzindo o espaço e suas possibilidades de plantarem e sobreviverem. Acossados em seu próprio território, os quilombolas sofrem toda sorte de violências, ameaças e perseguições que às vezes chegam ao extremo do homicídio.  

“(…) entre o início de 2008 e o fim 2017, 32 homens e seis mulheres foram assassinados. A Região Nordeste foi a mais recorrente, com 49% dos casos. Bahia e Pará foram os estados mais violentos, seguidos por Minas Gerais, Rio de Janeiro e Piauí”.[6] Só em 2017 foram 18 assassinatos.  

Os quilombolas em geral não aceitam passivamente o saque sobre seus territórios; unidos enfrentam o preconceito e a discriminação, lutam, denunciam, resistem, estudam e vão conhecendo seus direitos. 

 As mulheres quilombolas são pilares e baluartes na manutenção e reprodução das manifestações artísticas, religiosas afro-brasileiras, culturais em geral, ao longo do tempo. Além disso, muitas se tornaram incríveis lideranças.  

“(….) foram elas que despertaram para a importância das lutas por liberdade, desde os tempos da escravidão. Na sociedade atual, ainda são elas as responsáveis pela preservação e transmissão da cultura, por meio da escola e dos valores morais. Elas são a representação máxima na busca pelos direitos do quilombo (…)” [7]

Maria das Virgens Santos da Comunidade Quilombola do Mocambo (Sergipe), é um exemplo, dentre tantos:

“(…) uma das fundadoras da comunidade e responsável por puxar o samba de côco nos momentos de festa. Ela nasceu aqui em Mocambo (Porto da Folha, Sergipe) no ano de1935 e faleceu na comunidade no ano de 2013. Sua casa era a pensão comunitária para todos os irmãos que fizeram parte da luta da comunidade quilombola. Maria das Virgens era ainda uma apaixonada pela luta contra a escravidão dos nossos irmãos quilombolas”. [8]

Desafiados pelas violências e pelos avanços tecnológicos, que influenciam os mais jovens e alteram os seculares processos de integração social, os quilombos pelo país espalhados apresentam-se em diferentes estágios de preservação de suas tradições e traços de ancestralidade, assim como em relação à etapa em que se encontra em sua longa jornada pelo reconhecimento legal até o ponto decisivo: a titulação definitiva de suas terras. Este é um demorado, burocratizado e judicializado caminho, porém, necessário para o acesso à educação, à saúde, à alimentação, ao saneamento básico, à energia, à água, ao transporte, dentre outros.  Os quilombolas costumam dizer: “como podemos reivindicar algo em nosso território se legalmente não somos donos dele, embora aqui estejamos há séculos?” 

“Não existe povo sem território. Eu preciso do meu território, porque a certificação me dá reconhecimento enquanto quilombola. Sem a certificação eu não posso construir casas de quilombolas. Quando eu não tenho a propriedade desta terra, eu não posso desenvolver a minha cultura, minha agricultura, minha pecuária, a minha vocação econômica, porque pode chegar uma pessoa dizer que é o dono e eu perder minha lavoura, minha casa, então fica difícil fazer investimentos’, explicou o presidente da Fundação Cultural Palmares, Erivaldo Oliveira”. [9]

O processo de reconhecimento é garantido pela Constituição Federal por meio do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT): “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”, reforçado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (da ONU) sobre Povos Indígenas e Tribais, da qual o Brasil é signatário.

Já o decreto presidencial 4.887/2003 regulamenta todo o processo de reconhecimento (assim como a competência dos órgãos envolvidos), que se divide basicamente em duas partes:

  1. A certificação cultural e antropológica com o objetivo de identificar e reconhecer oficialmente a comunidade como de fato quilombola, assim como delimitar o seu território, processo que se inicia com a Fundação Cultural Palmares (Ministério da Cultura) e o registro no Cadastro Geral dos Remanescentes de Quilombos e continua com a elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), elaborado pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária);
  2. A partir daí inicia-se a longa batalha legal pela posse definitiva do território, na luta contra os poderosos, envolvendo demarcação, titulação e registro. A alegação para tanta demora costuma ser a ocorrência de contestações, ajustes, desintrusão, acertos de títulos, correção de situações errôneas, recursos movidos, julgamentos etc.  

Se muitas comunidades de remanescentes de quilombos ainda não iniciaram o processo de reconhecimento, em 2017 “Das certificadas pelo governo, apenas 11% têm a titulação das terras, o que permite pleitear a construção de escolas e postos de saúde para a comunidade, por exemplo”.[10]   

Assim, poucos conseguem comemorar como a comunidade remanescente de São José da Serra (Rio de Janeiro): “A vitória dos moradores de São José da Serra é histórica e os fortalece na luta pela titulação de seu território. Além disso, certamente inspirará outras comunidades quilombolas de todo o Brasil a lutar por seus direitos até o dia em que a titulação de suas terras seja a regra em nosso país, e não a exceção”. [11]

Enquanto isso, os invasores se aproveitam; os mais ricos se utilizam de artifícios jurídicos, protelando ações via recursos, e quando vão embora, o estrago já está feito. 

Esse racismo institucional fica patente na crescente diminuição de recursos destinados aos processos de demarcação de 2013 em diante. 

“Segundo levantamento da Organização Terra de Direitos, com base em informações do Incra, a destinação de recursos públicos para a titulação de territórios quilombolas sofreu uma queda de mais de 97% nos últimos cinco anos.

O levantamento mostra que em 2013 foram usados mais de R$ 42 milhões para a desapropriação das terras onde estão os territórios quilombolas e este valor caiu para cerca de R$ 1 milhão, em 2018”. [12]

Bancada ruralista no Congresso Nacional sempre atenta. O Partido da Frente Liberal (hoje Democratas, DEM) tentou acabar com o Decreto 4.887/2003 através da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239, derrubada em 2018 pelo Superior Tribunal Federal (STF).  

Se o que vinha antes já era preocupante para os quilombolas, no Governo Bolsonaro ficou mais ainda. Logo no seu primeiro dia o Presidente editou a Medida Provisória n. 870 (na conjunção com a promulgação do Decreto 9.660) que trata da reestruturação administrativa do Governo Federal. Assim, o INCRA (responsável pelo processo de titulação das terras quilombolas, como vimos) foi transferido da alçada da Casa Civil para o Ministério da Agricultura, da ministra Tereza Cristina, justamente ex-líder da bancada ruralista no Congresso Nacional. Institucionalmente o INCRA, presidido por um general, substituído em setembro, faz parte da Secretaria de Política Agrária, chefiada por um pecuarista. Não bastasse essas mudanças pouco alentadoras, foi anunciada a paralisação das demarcações dos territórios quilombolas, o que afetou o reconhecimento dos, aproximadamente, 1.700 processos em curso.  

Se, por um lado, há a boa notícia de que a partir de 2020 os quilombolas serão incluídos no Censo do IBGE, para se conhecer dados básicos, assim como o total de integrantes na sociedade, por outro, em maio deste ano, em evento organizado pela Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF), discutiu-se a paralisação das demarcações, assim como a extinção de programas que afetam os quilombolas, tais como o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), o de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Todavia, assim como o jongo, as festas do divino, a capoeira etc., estão desde sempre entranhados nas comunidades quilombolas, a percepção da luta constante também: 

“Para nós nunca foi fácil ao longo dos últimos quinhentos anos, jamais vamos abaixar a cabeça”.  [13]

 Notas:

[1] Cassiano Ricardo Martines Bovo é doutor em Ciências Sociais (PUC-SP) e membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo.

[2] “De acordo com o Artigo 2º do Decreto 4.887/2003, são considerados remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (http://www.incra.gov.br/quilombola).

[3] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2017/04/03/bolsonaro-diz-que-ira-acabar-com-demarcacoes-de-terras-e-financiamento-de-ongs.htm?cmpid=copiaecola. Essa afirmação rendeu uma condenação de 50.000,00 por danos morais, em outubro de 2017, e foi denunciada na Procuradoria Geral da República um ano depois. O Presidente foi salvo pelo STF em setembro de 2018, que rejeitou a denúncia por 3 votos a 2, caso contrário poderia ser impedido de se candidatar às eleições.

[4] https://g1.globo.com/politica/noticia/pgr-denuncia-deputado-jair-bolsonaro-por-racismo.ghtml

[5] “Essa coesão é fruto também da reprodução – e produção – de festejos, festas, danças, banquetes e distribuições de alimento, que a todo tempo reafirmam laços de reciprocidade dentro do grupo e com as comunidades vizinhas, unindo todos no eterno movimento de dar, receber e retribuir” (http://incra.gov.br/sites/default/files/santa_rosa_dos_pretos-ma_26-10-16_miolo.pdf).

[6] https://epoca.globo.com/comunidades-quilombolas-tentam-resistir-ao-avanco-de-grandes-empreiteiras-23613697

[7] http://www.incra.gov.br/sites/default/files/mesquita.pdf

[8] http://www.incra.gov.br/sites/default/files/mocambo-se.pdf

[9] http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-05/menos-de-7-das-areas-quilombolas-no-brasil-foram-tituladas

[10] https://reporterbrasil.org.br/2017/08/quilombolas-a-luta-pelo-direito-de-existir/

[11] http://www.incra.gov.br/sites/default/files/terras_de_quilombos_sao_jose_da_serra-rj.pdf

[12] http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-05/menos-de-7-das-areas-quilombolas-no-brasil-foram-tituladas

 


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